quarta-feira, dezembro 20, 2006

Só confio em mamãe� *

Eduardo Coutinho conseguiu registrar em doc o que já de conhecimento popular geral: os velhos são mais sábios. Ainda mais quando se trata de um povo judiado pela seca e pobreza do sertão da Paraíba. A pequena São João do Rio Peixe, no sítio Araçás, é mais uma dessas comunidades perdidas na estiagem nordestina, mas como tantas outras guarda uma história de vida velada por moradores que já passaram por tudo nessa vida para sobreviver. O documentário O Fim e o Princípio nasceu “do nada�. No estilo Cinema Novo menos tosco, Coutinho baixa o santo forte de Glauber Rocha, e com uma equipe, coloca a câmera da mão e ruma atrás de histórias. Sem tema definido, sem pré-produção, sem roteiro e aparentemente de mente aberta para o que der e vier o diretor encontra o cenário perfeito para o doc. Se isso não acontecesse, o tema seria justamente essa busca por pessoas com histórias interessantes.

Em Araçás, a produção do filme encontra Rosa, professora da comunidade que abriga pouco mais de 80 famílias. Rosa guia o filme. Literalmente faz um trabalho de produção. Através de um mapa da comunidade feito à mão ela traça os caminhos que a equipe irá percorrer. Coutinho instrui Rosa em diálogos que, para deixar o filme com cara de improviso, foram mantidos na edição. Rosa é peça chave do filme, sem ela a comunicação entre os “dois mundos� iria ser árdua e talvez impossível. De prima, essa relação parecia difícil, deixar a vontade em frente à câmera quem pouco viu na vida algo além da seca é realmente um trabalho em tanto. Com paciência, respeito e sorte, aos poucos, os moradores foram se soltando e foi definido o tema do filme: o mundo particular de cada um. Como a maioria dos moradores é idosa, contar casos dessa vida de Deus não foi muito problema. Cada prosa é uma lição de vida, uma vida cheia de certezas e incertezas sobre a própria vida, a fé e a morte. Cada prosa é uma poesia. Cada prosa faz brilhar os olhos que expressam o cansaço, a experiência e a sabedoria. Cada prosa mostra um universo confidencial, cheio de segredos. Cada prosa mostra um poder de oratória de quem mal estudou. Cada prosa mostra um vocabulário alegórico, rico, próprio. O valor das pequenas coisas, da família, os símbolos, os significados, expressões, as constatações e a filosofia popular são capazes de arrepiar a espinha de quem se entrega de corpo e alma ao mundo de Araçás.

Como se não bastasse, a fotografia, a simplicidade na edição e um silêncio comovente fizeram que O fim e o Princípio entrasse na minha lista das obras que mais me causaram abalo moral. Isso pensando como simples apreciadora do filme. Como aspirante a documentarista, a obra me inspira, me faz querer correr atrás de uma câmera e me faz dizer de boca cheia: “eu nasci para fazer isso�.


Dica: Ver com legenda. É deveras complicado entender as particularidades da linguagem.

*Um dos moradores solta essa frase.


Você pode encontrar O Fim e o Princípio na Canal 3 Videolocadora.

4 comentários:

Anônimo disse...

Belo texto. Ha quanto tempo eu insisto pra vc assistir a este filmaço, hein?

Eu gosto das palavras usadas. Preciso rever pra acrescentar algumas no meu vocabulário do dia-a-dia. E a ruma de historias e pessoas interessantes?

Como apreciador de documentarios, é de se aplaudir como Coutinho consegue arrancar tanto de seus entrevistados sem perguntar muito. E nao deixa de ser interessante ver a inversao de papeis, quando um morador pergunta se o cineasta nao acredita em Deus. Ô saia curta pra um ateu...

Beijo no coração.

Mi do Carmo disse...

Não assisti antes porque sou enrolada... rs

Quando eu falei da sabedoria dos mais velhos e questionamentos foi dessa inversão mesmo...só naum quis contar muito...


"Beijo no coração" eca!
hahahaha

Halff disse...

Tudo isso me lembra a vida do candomblé e toda a sabedoria dos mais velhos.
Todo o culto ser regido por uma bruta hierarquia e as mulheres tem um papel completamente especial.
Olhar de vista baixa, mas ainda assim conseguir ver toda a vida, todos os "causos", os fundamentos ou como os cariocas dizem, todo o "fuxico do axé".

Shirley de Queiroz disse...

Aff... você fez o blog depois de mim e já escreveu tanto!! Deus benza!!! rsss